Adalice Araújo

Cassiana Lacerda

Fernando Bini

Fernando Velloso

José Carlos Cifuentes

Maria José Justino

Nilza Procopiak

Sérgio Kirdziej


Guilmar Silva e a leveza da matéria

Para Klee, os elementos formais do desenho são o ponto e a energia da linha, do plano e do espaço. Creio que, em seus desenhos, Guilmar privilegia a energia da linha (ou a expressividade da linha), porque entendeu que a linha é a infinita possibilidade do movimento (Kandinsky). Muitas vezes a artista precisou deixar a pintura descansando e voltar-se para o frenesi do desenho. E, admitamos, há um forte parentesco entre a linha e a escrita. Em um momento crucial de sua vida, desanimada de tudo e mesmo da arte, recebeu o sábio e oportuno conselho de seu analista (Norberto Irusta): pinte a sua leveza como você pintou a sua fúria. Deixando a fúria nas pinturas, os desenhos de Guilmar são constituídos de leveza. E Guilmar era uma pessoa leve, daquelas de quem é possível estar junto e dividir o silêncio.
O que não significa dizer que não experimentasse conflitos. Tinha-os, e muitos, mas teve a delicadeza de reservá-los ao seu íntimo – ou à linguagem muda da arte. Nada melhor que o desenho para esse diário íntimo.

Seus desenhos sussurram; às vezes gritam. Por meio da linha, a artista tanto pode conter os gestos como alargá-los aos devaneios, aos desejos, às vontades, professando sua fé na vida e na arte. São linhas soltas que se tocam, criando emaranhados, corpos atmosféricos no espaço assediado pelo tempo. Nos desenhos, alguns muito próximos à pintura, a artista encontra a pele da forma.

São grossas massas de pigmentos agregados à cola, o que lhe permite certa densidade ou a textura da matéria, ora rugosa, ora macia. Outros, mais frequentes, voltam-se à transparência das linhas. Também nas cores há uma tensão entre os tons esmaecidos dos ocres e a imponência do preto. Lá atrás (1989), mergulhou fundo nas cores violentas, momento em que namorou os fauves. Fuga? Necessidade de extravasar a agressividade? Durou pouco. Nesse curto espaço, a violência das cores engolia as linhas.

Mesmo assim, conseguiu resultados interessantes, um prelúdio de cores por meio das transparências que a aquarela permite. Verdadeiras sinfonias de ocres, de terras e de azuis. Mas a linha dominou e retornou a galope.

Nas linhas, desenhos ou escrituras, recorrendo às colagens de jornais (herança cubista), a artista brinca com as partículas da matéria, obtendo um diálogo sutil entre a linha reta e as curvas. São imagens abstratas, insinuações nunca totalmente definidas, um pouco da generosidade da personalidade de Guilmar, aberta à vida. Pela sua indeterminação, a abstração de seus desenhos-escrituras insinuam realidades e nos convidam a ver quase rostos, quase mãos, quase paisagens, quase flechas rasgando o espaço, quase armas ou objetos cortantes; monstros que se contorcem, cabeças de bichos, cavalos, aves voando, dançarinas. Pássaro que emerge de um afogamento? Mulher que dança envolta em leves tecidos qual uma Isadora Duncan?

Orquestra em plena musicalidade? Sabemos da afinidade da artista com Vivaldi. Doces acordes movem suas mãos na leveza dos gestos: os traçados de Guilmar encontram o tom da linha. É um desenho que emerge de finas articulações próximas ao princípio Yin: feminino, centrífugo, expansivo, exteriorizado, espacial, fino e leve (Bosi). São seres que saltam do chão, da terra, do sólido para o etéreo, alçando o espaço, desatrelando a imaginação.

Em Guilmar, é possível ver essa ligação profunda entre a vida e a obra. Alma transparente que se revela na leveza da linha. Sedução da artista pelo voo, pela liberdade, pelo desejo de escapar das opressões da vida? Como diria Merleau-Ponty: é certo que a vida não explica a obra, porém também é certo que elas se comunicam.

Olhando alguns desenhos, nos interrogamos: são seres vivos ou máquinas voadoras? Anjos, certamente. Seres etéreos habitando o espaço. Figuras bailando na paisagem. São metamorfoses de bicho-gente, natureza-espírito, homem-máquina, pintura-desenho. Entre o cosmos e o caos, a artista vagueia no imponderável, desenhando ou escrevendo arduamente as tensões da vida.


Maria José Justino
Janeiro de 2009.


Referências:
BOSI. O ser e o tempo da poesia.
São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1977. p. 90.

KANDINSKY. Punto y linea sobre el plano.
Barcelona: Barral editores, 1975. p. 58.

KLEE, Paul. La pensée créatrice.
Paris: Dessain et Tolra, 1980. p. 76.

MERLEAU-PONTY. Sens et non-sens.
Paris: Nagel, 1966. p. 34.

Norberto Irusta. Guilmar Silva.
Memorial de Curitiba, Catálogo da exposição Linhas e Rupturas, 2001.