Adalice Araújo

Cassiana Lacerda

Fernando Bini

Fernando Velloso

José Carlos Cifuentes

Maria José Justino

Nilza Procopiak

Sérgio Kirdziej


O exigente exercício da pintura

Diante destes trabalhos de Guilmar Silva, lembramos do passeio descrito por Klee, enquanto caminhava entre um campo arado e uma floresta espessa, e podemos concluir com ele: “antes de adormecermos, muitas coisas vão surgir como lembranças, pois toda pequena viagem é rica em impressões” (Credo do criador), ao que a artista ainda inclui um passeio pelas ruas de uma grande cidade.

E, da mesma forma que podemos olhar a obra de Klee, como bem lembrou Nilza Procopiak, este conjunto de pinturas também pode ser olhado como uma Melodia cujo movimento certamente é um Allegro, é Vivace no momento que os quadros explodem em formas e cores, para em seguida, como se procurassem um repouso para fazer a respiração voltar ao normal, seu movimento tende ao Andante Grazioso, reduzindo as tonalidades e se dirigindo para a monocromia.

A pintura é emoção diante do mundo. Não representa a natureza, mas os movimentos da natureza que o artista expressa segundo seus próprios critérios: “creio que o pintor deve ser traspassado pelo universo, e não querer traspassá-lo”, nosdisse Klee.

As telas de Guilmar mostram ter origem na organização espacial e pictórica do cubismo, que ela conduz até a abstração e conserva os elementos tirados desse movimento artístico, que também são a tentativa de se vincular ao passado; sua obra é um trabalho de construção de formas, sem o efeito da perspectiva, com pinceladas livres e que, pelas posições das telas, nos fazem lembrar fragmentos de paisagem ou de figuras, jogos escondidos de formas naturais, que resultam em ângulos, fraturas, rupturas bruscas, por vezes cortantes, de matéria e tonalidades. São obras decompostas analiticamente e que, pela vibração cromática, parecem em explosão, fora de controle, mas que na verdade são claramente produzidas com uma inteligência que está dominando a emoção. “Certo fogo pretende viver, desperta; guiando-se pela mão condutora, atinge o suporte e invade-o, depois, qual faísca reluzente, fecha o círculo que devia traçar: volta aos olhos e para além deles”. (Klee).

De um lado, a geometria interna de formas dinâmicas; de outro, o intenso cromatismo, que querem negar a pura gestualidade e também não são premeditados. No traço do pincel, não vale só o gesto. Sua grande preocupação não é essa, mas seu interesse é pelos signos que podem resultar na tela. O quadro é ato, é ação sobre a superfície a ser pintada, movimento do espaço e da luz, capaz de unificar o duelo de forças contrárias – um exigente exercício de pintura.

Harold Rosenberg, fazendo referência aos expressionistas abstratos norte-americanos, menciona o instante em que a tela começa a tornar-se uma arena dentro da qual o artista age, luta. Esse é o mesmo processo de Guilmar: ela luta com a superfície. Num primeiro momento, parece que a pintura a domina, mas no final tudo parece fragmentado. Formas aparentemente aleatórias produzidas dentro de uma prática estruturada e madura – é o resultado do seu grande conhecimento técnico. Ela trabalha com todos os pressupostos geométrico-cubistas: a estruturação rigorosa do quadro, a superfície plana da tela e as colagens. Foi a origem fauve-cubista da pintura moderna que possibilitou uma nova força da cor na pintura ocidental e foi esta mesma origem que forneceu à artista os meios de acentuar as linhas de força da composição na construção de sua esquematização monumental.

Quando ela sente que pode perder o rigor construtivo da obra, reduz as totalidades de sua palheta, ilumina os fundos dando-lhes claridade que faz emergir certa profundidade, um espaço de respiração, de novo uma pintura que lembra Klee e toda a sua efusão e sua fantasia imaginativa.

A artista brinca com a matéria, usa massas de tinta que são por vezes uma camuflagem protetora às colagens de jornais, uma massa de coisas diferentes, deixando ou não reconhecer os textos – os jornais são pedaços de realidade ou, como na descrição de Aragon, para quem o papel colado “entra pela sua matéria [...] onde se debate um problema de cor, de enriquecimento da palheta”.
Espaço pictural que absorve o corpo estranho, o real em estado bruto, usado em efeitos de palimpsestos como se a pintora se arrependesse do seu ato ou buscasse uma nova transparência. São imagens e escritos retirados dos meios de comunicação e misturados a pinceladas aparentemente gestuais que realçam o valor da matéria pictórica e, ao mesmo tempo, embaralham os significados textuais.

“São tagarelas demais!” – diz a artista ao se referir a algumas de suas telas; outras, então, são silenciosas. Aqui predominam os claros, os terras bem suaves, lembram o grafismo oriental de formas soltas e esvoaçantes, “quase escrituras”, e nelas a luz parece brotar do fundo da tela, na autonomia e na materialidade do fato plástico. Destaca-se o trabalho intenso sobre a tinta, produzindo alguns elementos gráficos, quase desenhados. Uma superfície organizada sutilmente com esta “bela matéria” monocrômica é trabalhada em campos de valores modulados, uma cosmogonia subjetiva, que por vezes parece querer apanhar o fantasma de um animal.

O espaço anterior, fechado, se abre, acentuando ainda mais a problemática da superfície, a planeidade e a opticalidade, mas é também espaço aberto a mais poesia, um recobrar de equilíbrio. A cor branca invadindo a tela e dilatando o espaço, a irrupção da luz nos conduz em direção a qualquer coisa de imaterial, de nebuloso.

Algumas telas pedem nosso afastamento, sua monumentalidade quer uma visão de conjunto, mas é importante não ignorarmos os detalhes, quase sempre mais exuberantes, seja na expressão gráfica, na matéria pictórica ou na solução plástica.

Guilmar Silva tenta submeter a espontaneidade de cada gesto ao controle do conjunto, método este que exige do pintor e do espectador a proximidade e o distanciamento do quadro, mas não nos esqueçamos de que um exercício pictórico também requer um exercício do olhar, e é ainda uma vez mais Paul Klee quem nos auxilia quando diz que no começo da realização da obra o que há é o “Ato”, mas após, não tendo mais nem começo nem fim, somos obrigados a admitir que há a primazia da “idéia”. Portanto, qualquer esforço vale o resultado, mesmo que tenhamos que usar a poltrona de Feuerbach, “para que o cansaço das nossas pernas não incomode o nosso espírito” e, assim, melhor possamos observar e fruir estas magníficas pinturas.

Fernando A. F. Bini
Curitiba, agosto de 2001
Exposição Linhas & Rupturas – Memorial de Curitiba - 2001