Adalice Araújo

Cassiana Lacerda

Fernando Bini

Fernando Velloso

José Carlos Cifuentes

Maria José Justino

Nilza Procopiak

Sérgio Kirdziej


Linhas e rupturas

A questão teórica da crise da representação é indissociável da modernidade e repercute até nossos dias como
fator decisivo da Arte. Desse modo, o conjunto de textos críticos, teóricos e de criação de Charles Baudelaire, por exemplo, formam um vasto celeiro de indagações, constatações e buscas na linguagem em torno do fim da representação realista, uma vez que se situam no epicentro da sua própria crise.
Oscar Wilde dissemina em sua obra epigramas, paradoxos inesperados e ironias irresistíveis que conduzem à assertiva de que a arte abstrata é a própria condição da complexidade e relatividade da vida moderna. Para dar conta da complexidade, considera que precisamos de uma atmosfera, com sutileza de nuanças, sugestões e perspectivas estranhas. Quanto à relatividade, esta concorre para a necessidade de um passado. Para ele, a Pintura, a Música e a Literatura são as artes supremas do que denomina nova representação.

Seu poema em prosa A Arte exemplifica essa teoria: um contador de histórias passava horas narrando as belezas de um jardim cheio de duendes, flores fantásticas, plantas exóticas e cenários inesperados, nos quais lagos misteriosos decorados por ninfeias misturavam a vegetação aos peixes de mil cores. Um dia, viu um jardim igual ao que criava-narrava. Nunca mais descreveu aquele jardim, pois o que existe no real não deve ser objeto da arte.

Teoricamente, a noção de que a arte cria sua própria realidade leva Max Bense a considerar arte co-realidade. Diante de tal constatação, independentemente de ismos e marcos, o artista moderno contemporâneo, ou aquele comprometido com a tradição do novo, afasta-se do figurativo realista por diversas vertentes de expressão de ruptura direcionadas à abstração, seja pela via do símbolo, do onírico, do metafórico, do mítico, do místico, do surreal.

Observada a trajetória de Guilmar Silva até suas pinturas mais recentes, percebe-se uma espécie de novo encantamento envolvendo a eclosão de formas e cores, enquanto tempo e espacialidade propõem nova dimensão ao seu fazer artístico. A menção ao percurso da artista remete de imediato à sua passagem pela arte do buril, da gravadora que trabalha com esmero o metal, modo de expressão que torna mais evidente seu espírito metódico e o direcionamento artesanal que imprime aos seus trabalhos. Em síntese, seu percurso evidencia a busca permanente e o caminhar pela rota difícil.
A experimentação e a inquietação interessada na solução individual eclodem na energia do expressionismo abstrato impulsionado por gestos com uma força que se faz presente no vigor das linhas, nas camadas de tinta cuja espessura, contrastando com fundos diluídos, cria um jogo que alterna texturas e formas variadas.

A eclosão da cor ou seu itinerário através das cores revela trabalhos monocromáticos reproduzindo certas ressonâncias da experiência de gravadora, seu gosto pelos tons e sobretons em ocre ou terras-sépias da fase urbana, trabalhos esses retomados com mais maturidade ao optar pelo abstracionismo expressionista, quando certa atração telúrica se alterna com os voos gritantes em vermelho, em amarelo-ouro, aninhados num compositivo plástico para o qual concorrem o espaço em branco e/ou linhas dramáticas em negro. Sua fase mais recente revela-se no tratamento espacial feito de
perspectivas múltiplas e opções pela placidez do azul ou pelo uso perspicaz de tons neutros, criando uma vibração capaz de romper a barreira das formas e impor o dinamismo de sua sensibilidade turbulenta que enfrenta incontida o contido, demonstrando na tensão a capacidade de chegar a calmas harmonias. Tal articulação da cor com o espaço e o tempo faz lembrar o estudo do poeta das Flores do Mal sobre a “imaginação colorida“ em Delacroix, havendo que ressaltar nesse processo evolutivo o tratamento que passou a imprimir à composição espacial.

Em seus trabalhos da década de 1980, a artista revela um particular gosto de aninhar os nichos emaranhados, evidenciando explosões contidas de gestos, cores e sombras, que acabam em insuperáveis labirintos. Tais labirintos, não abandonados em fase posterior, atuam como ressonâncias de uma predisposição emocional interessada em administrar um insuportável pesadelo.
A claustrofobia de um anterior labirinto sem saída e temas variantes são retomados, mas de forma diferente: agora é a multiplicação de perspectivas, pois uma nova diversidade metafórica atinge a encruzilhada da perspectiva. O olhar percebe direções desconcertantes. Este novo foco energético que vai iluminando suas pinturas permite que variações livres de elementos pictóricos formem novas constelações. Linhas e Rupturas é antes de mais nada a conquista de uma nova espacialidade, feita de aglutinações livres, de gestos e cores, de integração de perspectivas e variantes de elementos menos tencionados.

Ameniza-se o ameaçador da falta de saída, alargam-se as fronteiras, brilham mais cores, a espontaneidade gestual ganha novos impulsos.
Evidencia-se um arsenal mítico aliado a fragmentos da realidade empírica capaz de dar conta de certo pressentimento da capacidade da artista de armazenar a vida, pré-sentir, adivinhar o que ficava escondido no que Hegel denomina de “imbróglio da realidade”.

Linhas e Rupturas abre portas que dão para uma claridade indefinida
aludindo a múltiplos caminhos, espelhando o trabalho de incansável pintora
capaz de não se cristalizar num sistema, pois sabe fazer de cada tela um desafio.

Cassiana Lacerda
Julho de 2001.