Guilmar tinha por hábito transcrever cada sessão de análise em sua agenda, para se aprofundar melhor no conteúdo trabalhado com o psicanalista doutor Norberto Irusta.

As sessões duraram de 1996 a 2001, quando foram bruscamente interrompidas pela morte do psicanalista, dia 28 de junho de 2001.

“Passei a usar tintas acrílicas. Fiquei enlouquecida. A secagem rápida do produto me obrigou a um ballet onde tudo fluía. Os movimentos não eram planejados e eu finalmente pude sentir a liberdade criativa que vinha do meu inconsciente.”

Por mais que eu viva, jamais me livrarei da fantasia do pai príncipe maravilhoso nos olhos infantis que se mostrou humano. Não tolero o lixo e o pó que entram junto ao ar e à luz quando abro a porta. Então levanto muros, fecho portas. Sou porta estandarte das cruzadas contra o lixo humano ... No entanto só tenho olhos para as minhas prisões. Não considero as possibilidades de expressão.

Minha vontade, meu querer está encerrado no muro. O dever não me assusta. Dele eu dou conta. Quando meu querer se manifesta, ele traz a carga das humanidades, minhas e dos outros e aí, o vôo fica cego e difícil. O querer pode gerar o prazer e então ... fica proibido. É preciso dificultar tudo que resulta do querer. Não me permito sentir o que ele teve a coragem de viver e sentir.

Estou rindo à toa. Leve, solta, tranqüila. Descobri ou associei na análise ao quadro pintado ontem: O GRITO! Que leão marinho louco, boschiano, irracional, emocionante, a berrar as minhas entranhas. Que emoção louca, que sensação que estou flanando acima do meu muro. Que vontade de vê-lo underneath, vazio, com aquela solidão e aridez aos quintos dos infernos. Eu leve e solta voando em direção da luz. Felicidade! Só eu posso quebrar ou escapar deste muro, só eu posso pintar o meu grito, só eu posso pintar minha luz. MINHA LUZ! Mal posso acreditar. Estou com a alma em festa, quase iluminada.

Quero flanar entre as nuvens, ficar perto das estrelas, quero pintar as pegadas dos pássaros no céu.

.... Estou em estado de quase absoluta apatia. A euforia de tempos atrás me turbinava e eu era ativa, plena, entusiasmada. Agora, parece que tenho uma enorme pedra nos ombros e não consigo nem quero me mexer. Pressinto que necessito de um motorzinho externo. A bateria interna está extinta. Como fazer? Meus heróis se acabaram, estatelaram-se em vala comum; arrastaram minha alma. Mas esse sentimento, essa ladainha não me leva a lugar algum. Preciso descartar essa coisa pegajosa que me impede alçar vôo. Mas como? Não sei, sinto-me solta no espaço, sem condições de estabilizar o vôo. Minhas asas estão quebradas.

Um pouco de angústia precedendo a sessão. Não havia o que dizer. Tudo estava dentro do previsível. Perguntou-me porque achava necessário continuar com a análise. Refleti e respondi que não sabia lidar com as duas personagens que me habitavam. Uma conservadora, previsível, ética, formatada; outra imprevisível, indomável, a toda hora pronta para abrir a cancela. Gostava das duas: uma me dá segurança, outra me surpreende, me fascina, me emociona. Gosto das duas. Então, segundo ele, sei lidar sim. Consigo fazer com que as duas atuem sem se anularem. Em psicanálise somos sempre duas: consciente e inconsciente. A questão é se uma castra a outra. Assim o meu problema é não reconhecer-me nessa outra, é surpreender-me com essa expressividade desenfreada, querendo sempre arrebentar a cancela. Novamente chego na poesia do Yeats: ....

O prazer do difícil tem secado
A seiva em minhas veias. A alegria
Espontânea se foi. O fogo esfria
No coração. Algo mantém cerceado
Meu potro, como se o divino passo
Já não lembrasse o Olimpo, a asa, o espaço,
Sob o chicote, trêmulo, prostrado,
E carregasse pedras. Diabos me levem
As peças de sucesso que se escrevem
Com cinqüenta montagens e cenários,
O mundo de patifes e de otários
E a guerra cotidiana com seu gado,
Afazer de teatro, afã de gente.
Juro que antes que a aurora se apresente
Eu descubro a cancela e abro o cadeado.

Essa Guilmar selvagem, potro com crina ao vento, trotando em campo aberto no espaço limitado da tela, é minha deusa da liberdade. Reconhecer-me é preciso.

“Pinte o vôo como você pintou a fúria”.
Comecei relatando a dificuldade de desaparecer, a exemplo do Billy Elliot quando dançava. No ateliê estou há dois finais de semana na mesma tela. Isso me angustia, o tempo se escoa, a alma encolhe assustada com o compromisso. Não estou sabendo mudar de registro. Preciso voar. Aventei a hipótese de estar sentindo falta de um “sofrimentozinho”. Diz que a leveza, a alegria, a liberdade também podem ser pintadas. Estou resgatando minha juventude alegre, sinto-me bem e não sei traduzir essas emoções leves em pinturas. O muro sumiu, então o espaço aberto me espera para o vôo. Preciso vitaminar minhas asas; tenho que voar sem cair no precipício. Devo pintar o vôo, a sensação de liberdade. A felicidade.

... É preciso rever toda a história da minha vida sobre outro prisma. Devo permitir-me o vôo, não mais “o prazer do difícil que seca a seiva em minhas veias”.

... No ateliê já não tenho mais o que dizer, os quadros vão se repetindo ad infinitum. Exagero, mas não é mentira. Talvez seja mesmo medo de uma possível nova explosão. Quem me dera estivesse para acontecer novo discurso, mais liberto, mais maduro, mais, mais e sempre mais, como costumo querer. Meus quereres são infinitos, nem eu sei de onde eles saem. As telas brancas, se já não me assustam, podiam muito bem me provocar. Gostaria de não estar mais atrelada ao preto no branco. Aberta ao espaço, aberta ao vôo, aberta ao comportamento múltiplo, à expectativa de que o sinal vermelho pode ser um verde. Isso existe. Isto é parte da vida ampla, multi-tudo que tanto quero viver. “Juro que antes que a aurora se apresente, descubro a cancela e abro o cadeado”. Que venha a tela em branco!

Nem sempre o visceral sangra. Falava do último quadro feito no feriadão e que encerrou os trabalhos de pintura da exposição. Foi emocionante. Ele veio trombeteando novo discurso, nova ordem. Não é espacial como os outros, não apresenta aves convivendo com espaçonaves, nem máquinas. É uma ave sangrada. A cabeça está inteira, mas o corpo foi cerrado e explicita nervos estriados, músculos dissecados, ossos, estruturas....mas não sangra. Está no espaço, mas é aqui perto do chão. É macabro mas não é horrível. Chega a ser delicado, bonito, comovente, pelo menos para mim. Ao encerrar a exposição e indicar novo discurso, ele provocou em mim um estado de euforia que enterrou a preocupação com o repetitivo, o deja-vu que tanto me angustiava. Essa repetição me exauria, estressava, entristecia. Esse grito de sangue veio desnudar alma nova, veio provar que a arte não tem limite, sempre haverá novo caminho.